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Autismo: cuidar da mãe faz parte do tratamento da criança

Autismo: cuidar da mãe faz parte do tratamento da criança
Paulo Noronha Liberalesso
jan. 28 - 8 min de leitura
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Olá, meu nome é Paulo Liberalesso, eu sou neuropediatra, diretor técnico do CERENA, mestre em Neurociências e doutor em distúrbios da comunicação. O meu tema de hoje é sobre a importância de cuidar da mãe e/ou do cuidador de quem é responsável legal de uma pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Inicialmente, gostaria de explicar que neste texto todos os artigos serão utilizados no gênero feminino, o que não significa, absolutamente, que as mães tenham um papel de maior protagonismo nos cuidados da criança após um diagnóstico de TEA. Aliás, muito pelo contrário. Seria de se esperar que, justamente após o diagnóstico de qualquer condição que coloque a saúde de um filho em risco, os pais assumissem de forma equilibrada os cuidados com esse “novo filho que acaba de nascer”. Mas, infelizmente, muitas vezes as coisas não ocorrem dessa forma ideal…

E quando eu digo que “este texto será escrito com artigos no gênero feminino” é porque, em todos esses anos em que venho cuidando de crianças especiais, tenho me relacionado de forma muito mais próxima com as mães. Porém, a minha alegria é multiplicada quando vejo entrar, juntos pela porta do consultório, pai, mãe e filho.

Mas, enfim…vamos falar dessas mulheres. Há poucos estudos em nosso país a respeito da saúde das mães de crianças com necessidades especiais e do impacto que esses cuidados diários e, muitas vezes ininterruptos, têm sobre a saúde física e mental dessas mulheres.

Poderíamos entender o “estresse” como uma perda do equilíbrio entre as demandas exigidas de alguém e a sua capacidade de responder a elas. Em situações estressoras, as exigências superam a capacidade da pessoa para reagir e responder, podendo surgir sinais físicos como ansiedade, medo, irritabilidade e perda de controle emocional. Além disso, podem também aparecer sinais emocionais como o embotamento afetivo, tristeza e a depressão.

É importante compreendermos que existem diversos fatores que influenciam nesse processo de adaptação da família, especificamente dos pais, à chegada de uma criança com qualquer tipo de deficiência. Variáveis como o acesso ou não aos recursos terapêuticos adequados, a condição financeira, ter ou não o suporte dos demais membros da família e a gravidade clínica da condição neurológica do paciente são fatores determinantes para o estabelecimento do nível de estresse materno.

Desse modo, podemos afirmar que o suporte social da família é, senão o principal, um dos mais importantes fatores para manter o equilíbrio materno e minimizar os estresse proveniente do diagnóstico de autismo de um criança.

Por questões socioculturais, a mãe passa a ser “reconhecida” pela sociedade como a principal responsável pelos cuidados do filho e isso acontece também no caso do diagnóstico do TEA. E, desse modo, “aos olhos da sociedade”, essa mulher deveria assumir todas as demandas relacionadas ao tratamento da criança. Contudo, nem todos são capazes de perceber o quanto essa lógica é humanamente impossível de ser cumprida!

Por conta de seu maior envolvimento, fica fácil compreendermos que a mãe será o elo mais “afetado” pelos múltiplos agentes estressores no pós-diagnóstico e, consequentemente, a pessoa que mais terá sua rotina de vida modificada. A vida dessa mãe passa por um verdadeiro processo de desconstrução.

Estudos publicados desde o final da década de 1990 demonstram, de forma consistente, uma relação direta entre o aumento do estresse materno e o diagnóstico de uma criança com necessidades especiais. Outros estudos publicados mais recentemente demonstram que a vida social ao redor das mães de crianças com deficiência é significativamente menor quando comparadas às redes sociais de mães de crianças com desenvolvimento típico. As mesmas pesquisas apontam que a falta desse suporte social, agrava o sentimento de infelicidade, abandono e impotência.

Por outro lado, diversos estudos publicados internacionalmente comprovam o efeito protetivo sobre a saúde mental e sobre a melhora na percepção da qualidade de vida de mães de crianças com deficiência com o aumento de sua rede de amizades (rede social) e maior envolvimento dos familiares da criança nos cuidados rotineiros.

Provavelmente, quem não tem uma criança no TEA em casa não é capaz de compreender a exata dimensão do que estamos a tratar aqui, mas a rotina destas mães é exaustiva física e emocionalmente.

Embora nosso foco profissional esteja totalmente voltado ao tratamento da criança com autismo, não podemos nos esquecer que essa mulher, como parte inseparável do binômio mãe-filho, precisa de um olhar cuidadoso. Simplesmente porque todo o tratamento, direta ou indiretamente, dependerá dela.

Em minha experiência pessoal, tenho conhecido, ao longo desses anos, centenas de mães de crianças com necessidades especiais que, verdadeiramente, cedem sua vida em prol dos cuidados daquele filho. Contudo, por mais que essa generosidade seja louvável, nós devemos tentar reestabelecer o equilíbrio entre “ser mãe”, “ser cuidadora” e “ser mulher”.

Por fim, eu gostaria de contar uma passagem que ocorreu comigo há alguns anos e que ilustra a relação entre uma mãe e um filho especial.

Tenho uma paciente chamada Fernanda, com uma grave paralisia cerebral, a qual acompanho desde o nascimento. Hoje, ela está com seus 14 anos. Essa garota vive somente com sua mãe, desde que seu pai foi embora e se casou novamente quando ela tinha em torno de 6 meses de vida. Honestamente, se alguma vez ele esteve em nossas consultas eu não me lembro. Talvez há muitos anos.

Eu já perdi a conta de quantas cirurgias Fernanda fez. Gastrostomia, traqueostomia, placas e pinos em sua coluna, cirurgias ortopédicas...evidentemente ela não anda, de modo que se locomove por meio de sua cadeira de rodas, conduzida pela mãe.

Devido ao atraso do desenvolvimento global, ela faz fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, hidroterapia e psicoterapia, o que ocupa cinco dias de sua semana. Após mais de 10 anos seguindo minhas orientações, numa manhã de agosto, essa mãe entrou sozinha em meu consultório e disse:

– Dr. Paulo, eu vim agradecê-lo por todos estes anos, mas essa é a última vez que vamos nos encontrar.

Imediatamente eu pensei: “Fernanda morreu”. Mas antes que eu pudesse falar, ela continuou…

– Eu quero que o senhor saiba que eu desisti. A partir de agora, fico com minha filha em casa. Não há mais terapias e nem sofrimento. Aproveitaremos a vida da melhor forma que pudermos, mas tratamento não farei mais.

Naquele momento, eu imagino que aquela mulher estivesse pensando que sofreria alguma repreenda minha como médico. E talvez eu devesse ter feito isso… mas eu não fui capaz, pois eu tinha a mais absoluta certeza de que aquela mãe havia dado tudo. Ela deu a sua própria vida para cuidar daquela criança e naquele momento eu só pude dizer a ela:

– Minha querida, você está totalmente certa. Às vezes, precisamos parar, reorganizar nossas bagagens e quem sabe mais tarde seguir a viagem. Vamos combinar assim: você ficará com Fernanda em casa pelo tempo que julgar necessário e, se algum dia você sentir que deve retornar, estaremos aqui te esperando.

Isso ocorreu há dois anos e desde então não nos vimos mais. Com esse episódio, eu aprendi duas coisas importantes que a faculdade de medicina não havia me ensinado: a primeira é que há algumas decisões que somente VERDADEIRAS MÃES podem tomar; a segunda, e talvez a mais importante, é que devemos cuidar precocemente da saúde dessas mulheres.

A partir daquele dia, durante as consultas, eu passei a perguntar:

– E você, como está se sentindo? Há alguma coisa que a gente possa fazer para tornar seu dia a dia mais fácil?


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